Ofélia
Caminhando em passos preguiçosos pelas vielas de um parque
deparei-me com sombras em um dia de muito sol. Elas impediam o calor
excessivo de tocar nosso corpo, mas ainda assim traziam uma
sensação de estranhamento, talvez como se sentiu Ofélia ao encontrar
suas primeiras sombras. Voltas seguidas pelo mesmo caminho não
distraíam àquela percepção. Curioso com o fenômeno perguntei-me
o que me assombrava e quis a resposta antes do fim da caminhada (ou
da vida, como conheceu Ofélia*). Pouco adiante vi uma criança menina que
descobriu um pássaro morto também deitado à sombra
fria de uma árvore. A mãe lhe explicava as questões da morte e disse
a filha que aquele pássaro já não estava lá, restando apenas o corpo.
Para aonde foi ele, mãe, disse a curiosa e preocupada
menina. Não esperei a resposta pois fui procurar as minhas.
Aquietei-me nas dúvidas, minhas internas sombras, pois entendi que algo
do estranhamento era, apenas, decorrentes do meu medo da morte.
As sombras voltaram a ser um abrigo do calor e enfeitavam o caminho
iluminado.
* Do livro “ TEATRO DE SOMBRAS DE OFÉLIA”
Dedicado à Thereza D'Espíndula, que conversa com as sombras com toda a propriedade.
Revista Contato ed.82, pág.30
Adoção e Amor
Faz muito tempo entrou pelo meu consultório uma pessoa encapuzada,
um tanto nervosa, querendo saber como funciona uma terapia. Isso não
acontece com frequência, pois normalmente as pessoas nos
procuram por indicação. Ela estava insegura, envergonhada, achava-se
inadequada tal como se sentem as pessoas vítimas da pobreza. Tinha ido
consultar um médico na sala ao lado e, na saída,
sabendo que precisava de ajuda, quase por desespero, entrou no
primeiro consultório de Psicologia que viu. Conversamos por alguns
minutos e ela se foi. Apareceu dois anos depois, com as mesmas
coisas que a fizeram vir pela primeira vez. Não tinha pai, tinha
vários irmãos de pais diferentes e morava em uma invasão na periferia de
Curitiba. Prometida como eterna cuidadora de sua mãe,
envolvia-se em relações amorosas das mais confusas. Era
definitivamente uma situação sem saída. Ainda assim procurou ajuda e
começamos um processo terapêutico.
Alguns anos depois, já formada e organizando a vida de uma maneira
muito mais saudável, encerramos o processo. Claro que as marcas da
pobreza jamais a abandonaram e nunca deixaram de me tocar.
Nos tempos seguintes conversamos várias vezes. Ela fez outros
processos terapêuticos por conta de sua ansiedade e baixa estima,
resultados das tais marcas. Mais recentemente procurou-me para
apresentar seu namorado, dizendo-me que fazia isto por eu ser seu
“paisicólogo”. Foi uma adoção imediata, que me encheu de alegria. É
claro que eu fiz cara de mau para ele!
Hoje, ao pedir autorização a ela para publicar esta história de
amor, ficamos profundamente emocionados e preenchidos de sentido.
Dedicado à C.M., que agora já entende um pouco mais o quanto ela é importante para mim.
Contribuições da Antropologia
No norte do Brasil existe uma comunidade de índios Kraho que foi observada pela antropóloga Vilma Chiara já faz alguns anos. Ela conta fatos curiosos sobre a organização da aldeia. Certa noite os índios do sexo masculino se reuniram para discutirem o que fariam no dia seguinte e decidiram caçar. Pela manhã Vilma encontrou dois deles que permaneceram na tribo, fato este que lhe causou grande curiosidade. Perguntou-lhes se não haveria problema para eles por não terem ido caçar, o que causou ainda mais estranheza aos dois índios. A relação de confiança entre eles era tão grande que a decisão de permanecerem na aldeia jamais seria questionada pelos demais. Os dois tinham certeza que suas escolhas eram acertadas e os que saíram para caçar confiaram totalmente na decisão. Todas as perguntas que começam agora com “mas se...” sobre este fato são nossas, homens brancos. Vilma também observou que, durante a tarde anterior à reunião a tribo inteira permanecia em suas ocas. Naquele momento os homens aconselhavam-se com suas mulheres sobre o iriam decidir à noite.
Outra observação antropológica relata o momento em que comportamentos conhecidos por nós, tais como roubos, bebedeiras e violência, passaram a ocorrer na tribo. Vilma observou que isto começou a partir do momento que as casas dos índios passaram a ser construídas em ruas, alinhadas, tal como conhecemos. Quando a tribo perdeu a circularidade, quando as portas não ficavam mais de frente uma para as outras, ou seja, quando não havia mais uma vigilância sobre o outro. Lá a paz social necessita de alguma força.
Dedicado à Vilma Chiara, que acorda no meio da noite com seus belos insights.
Revista Contato ed.80, pág.31
Pessoas criativas
Vez ou outra, encontramos pessoas que nos provocam a criatividade. Elas nos provocam a sair do comum, a fazer nossos pensamentos mais conservadores deixarem de serem commodities. Elas nos causam uma alegre inquietação, certa vontade de sair do comum, agir e não reagir, assim nos provocando a sair do comum. Essas pessoas nos levam a um estado de graça, de profunda contemplação, da mesma forma que a arte pode nos levar. Tem a leveza de José Carlos Fernandes, a graça de Ana Carla Fonseca e a curiosidade de Vilma Chiara, todos dotados de uma profunda sabedoria. Mesmo nos mais rápidos encontros nos tocam inocentemente com algo indizível.
Ando prestando mais atenção nas pessoas, tentando sair do meu olhar diagnóstico “prêt-à-porter”, me provocando a criar novas perspectivas a cada encontro. Penso que duas pessoas jamais se reencontram. O que nos diz que já conhecemos são apenas conceitos que formamos sobre o outro. Cada encontro é com o novo. Por medo dele é que nos apegamos aos conceitos.
Quem sabe possamos encontrar essa criatividade provocativa nas pessoas mais improváveis quando tirarmos delas nossos conceitos tão cuidadosamente construídos.
Rua Correia Dutra, cento e dezenove
No Catete, um canto no início do bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, é cortado pela Rua Correia Dutra, que começa lá no aterro e, em duas quadras, termina junto ao morro atrás da Bento Lisboa. Aquela rua é cortada somente pela Rua do Catete e o entorno deste cruzamento me enche de significados. Minha Ipiranga com São João. No número cento e dezenove morou a minha primeira namorada de regras claras. Filha de uma mãe amazonense e de um pai carioca, ela vinha com um manual de instruções tais como “sair de casa somente com um irmão”, “dez horas da noite em casa” e “namoro só no final de semana”. Aos domingos, lá pelas nove e meia da noite, eu pegava o ônibus para a praça quinze e depois outro até a Avenida Brasil, na altura da praia de Ramos, onde ficava a escola da Marinha. Abastecido de afetos, comia um pastel de queijo e tomava um caldo de cana e estava pronto para a dura semana que se avizinhava.
Alguns anos depois tive na mesma rua meu primeiro apartamento, mas já não tinha mais a mesma namorada. Caminhava pela região com uma sensação de estar em casa, algo que descobri só mais recentemente. Ao voltar do estaleiro, no qual o navio que iria trabalhar estava sendo construído, ia caminhar até o Largo do Machado, jogar videogame e, por vezes, encontrar amigos. Em uma dessas vezes encontrei um amigo que me relatou sua recente cirurgia para retirar um tumor do cérebro e sua experiência de quase morte. O primeiro contato com a possibilidade de perder alguém tão próximo aconteceu ali, bem próximo à entrada do metrô. Do outro lado desse buraco, ficava o Museu da República e um parque cheio de grandes árvores.
Os bancos do parque do Museu são ótimos lugares para se refrescar por conta da sombra e do vento que vem da praia. Melhor ainda é sentar lá e observar as pessoas que o visitam. Na sala de eventos de lá apresentei uma peça que recentemente dirigi. Olhar as árvores de dentro da sala minutos antes da peça estrear foi algo que me trouxe sensações muito conhecidas. Naquele entorno minha vida se preenche de uma liberdade que mal sei explicar.
Volto àquele lugar todos os anos para me reabastecer, caminhando pelas ruas e causando algum estranhamento às pessoas pelo meu sorriso constante no rosto. Às vezes, tudo pode ser tão intensamente simples, não é?
Penso que uma das queixas mais ouvidas nestes tempos líquidos é a do sentimento de não se fazer parte de um grupo, de uma família, ou seja, de pertencer a algo. A sensação de transitoriedade, da inconstância dos vínculos afetivos, das ameaças da natureza e de uma sociedade injusta nos visita constantemente. Por esses dias ouvi de alguns bombeiros o quanto é difícil remover famílias de áreas ameaçadas, exatamente pela sensação de pertencimento que, nesses momentos, parece ser mais importante do que estar vivo. Essas pessoas vieram de gerações que se estabeleceram naqueles lugares. Ao serem transferidas para lugares mais seguros, têm suas identidades ameaçadas, algo que para mim se assemelha àqueles atores que foram famosos, mas já saíram da mídia e não são mais reconhecidos. De outra forma, pelo jeito nada ecológico com que tratamos o nosso entorno, parece que de fato não pertencemos a qualquer coisa. É possível apenas ser ou só existimos sob a condição de “ser em algum lugar, ser no mundo”?
Talvez essa ideia de fazer parte, para deixar de ser algo passivo precise transformar-se em ação construtiva, reparadora e que demande um esforço que nos resgate o sentido da vida.
Tempos Líquidos
Há alguns meses iniciei um trabalho como voluntário em uma instituição que abriga moradores de rua usuários de drogas. Lá, eles passam algum tempo se nutrindo e guardando forças para, em sua maioria, voltarem às drogas. Por algum tempo, aderem ao discurso religioso da instituição e suas crenças, o que lhes ajuda a manterem-se longe do uso das drogas. A instituição tem à frente um pastor corajoso, resiliente e muito empenhado em levar os “meninos”, como ele mesmo diz, para uma vida melhor. Com muita frequência, aqueles jovens voltam para as suas adições. Alguns deles, pouco antes de abandonarem a instituição, conversaram comigo sobre como estavam organizando uma vida melhor, como estavam voltando a encontrar sua família e a conseguir novas oportunidades de emprego. Essa possibilidade de autonomia lhes foi insuportável e precisaram se anestesiar da dor que ela causa. Quando vejo um daqueles jovens desaparecer na fumaça do crack e se tornar uma ameaça, até mesmo para mim, entendo, ao que Bauman se refere, quando escreve sobre tempos líquidos. Nestes tempos de insegurança as relações escorrem pelas mãos.
Ainda sobre estes tempos, abriu-se a discussão sobre o casamento real. Fala-se sobre a realeza e a validação do luxo de suas ações. Um dos filósofos atuais que discute a questão do luxo é Lipovetsky. Para ele, esse excesso é condição humana, o que nos distingue de outros animais. Apoiado nessa teoria, escrevo esta luxuosa coluna, desta vez, para dividir minha líquida impotência perante a vida daqueles meninos que tocaram minha alma.
Por estes dias Ademir Paixão me relatou sua tristeza ao encontrar tanta pobreza e misérias não anunciadas no interior do Brasil, um lugar longe de todas as bolsas. Pequenas e diárias tragédias se somam às grandes que viram notícia e propaganda nos tocam diuturnamente. Intolerância às diferenças, ódio, vinganças, crimes e tanto mais que acontece dentro e fora de nós mesmos são coisas a enfrentar.
Também por estes dias estreou no Rio de Janeiro uma peça de teatro que estou dirigindo, a qual fala de uma grande tragédia, a guerra de Canudos. Penso que nela falamos exatamente as mesmas coisas que os noticiários. A diferença é que as pessoas saem do teatro, apesar do impacto de tanta desgraça e miséria humana, com a leveza e todas as possibilidades que a arte provoca. Fazer arte, Paixão, para não se desfazer, pois ela não cede a qualquer desejo.
Dedicado à Karine Belmont Chaves que faz a arte de juntar pessoas, até as mais difíceis.
Segundo previsões no próximo ano o mundo vai acabar. Tentei controlar meus absurdos pensamentos sobre o que fazer ou deixar de fazer antes de 2012. Divido aqui algumas das insanidades publicáveis, talvez compatíveis com as suas.
Seguramente moro em Curitiba, que, pelos novecentos metros de altura, as ondas possivelmente não irão atingir. A terra aqui é geologicamente antiga e pouco predisposta a terremotos. Os ventos, estes sim, oferecem algum perigo. Tenho que pensar em abrigos subterrâneos, túneis e galerias. Água, comida, pasta de dente, camisinhas, muito tenho que estocar. Tudo isto se eu sobreviver! Serei eu um dos escolhidos das naves extraterrestres que circundam a terra e serei salvo? Sem a minha família eu não vou! Agora existe uma urgência e preciso nomear as coisas importantes. Ou deixo mesmo o mundo se acabar?
Agora, aos cinqüenta anos, lembro que passei pelo final dos tempos algumas vezes, sem que Nostradamus tivesse feito qualquer previsão. Afinal, o que é o fim de uma relação amorosa, por exemplo? Ah, assim também é para alguns amigos quando o time cai seguidamente para a segunda divisão do campeonato nacional. Quantas decisões urgentes eu tomei e quais realmente coloquei em prática? E se o mundo já se acabou e estamos vivendo uma experiência mística tal qual o seriado “LOST”?
De tantas dúvidas penso ser sensato continuar ajudando àqueles em que alguns de seus mundos ruíram mesmo antes do planeta acabar. Viver em um mundo sem sentido parece muito mais grave do que o final dos tempos.
O Menino e a Raia
Visitamos, há algum tempo, um lar de abrigo para crianças vítimas de violência doméstica. Conversei com os pais sociais de uma das casas e ouvi histórias de como são seus dias. Em um certo momento aproximou-se de nós um menino que, curiosamente, prestava atenção em tudo que conversávamos. Mais curioso que ele, perguntei-lhe o nome e há quanto tempo morava ali. Dez anos, ele me respondeu, enquanto cuidadosamente trocava de mãos uma embalagem plástica que servia de carretel para um fio usado para empinar raias (assim se chamam as pipas nestas bandas). Senti em seus olhos um interesse pela minha curiosidade, mais ainda quando perguntei-lhe onde estava a raia. Respondeu-me tranquilamente que não tinha uma. Mais curioso ainda perguntei quando teria uma e com a mesma tranquilidade respondeu que não sabia, mas tinha a certeza que um dia iria ter. Isto tocou-me em algum lugar conhecidamente desconhecido. Durante quase uma hora fiz-lhe várias perguntas e aprendi sobre plantas e flores que cercavam o local. Percebendomeu interesse, ele dedicou-se às suas melhores explicações, por vezes deliciosamente exageradas, sobre a natureza. Ao final, ele saiu pela mata e voltou com copos-de-leite para nos presentear.
Sai do abrigo pensando em como conter minha vontade imediata de comprar-lhe uma raia e de quantas vezes senti isto em meu consultório.
Visitamos, há algum tempo, um lar de abrigo para crianças vítimas de violência doméstica. Conversei com os pais sociais de uma das casas e ouvi histórias de como são seus dias. Em um certo momento aproximou-se de nós um menino que, curiosamente, prestava atenção em tudo que conversávamos. Mais curioso que ele, perguntei-lhe o nome e há quanto tempo morava ali. Dez anos, ele me respondeu, enquanto cuidadosamente trocava de mãos uma embalagem plástica que servia de carretel para um fio usado para empinar raias (assim se chamam as pipas nestas bandas). Senti em seus olhos um interesse pela minha curiosidade, mais ainda quando perguntei-lhe onde estava a raia. Respondeu-me tranquilamente que não tinha uma. Mais curioso ainda perguntei quando teria uma e com a mesma tranquilidade respondeu que não sabia, mas tinha a certeza que um dia iria ter. Isto tocou-me em algum lugar conhecidamente desconhecido. Durante quase uma hora fiz-lhe várias perguntas e aprendi sobre plantas e flores que cercavam o local. Percebendomeu interesse, ele dedicou-se às suas melhores explicações, por vezes deliciosamente exageradas, sobre a natureza. Ao final, ele saiu pela mata e voltou com copos-de-leite para nos presentear.
Sai do abrigo pensando em como conter minha vontade imediata de comprar-lhe uma raia e de quantas vezes senti isto em meu consultório.
Retiro das Rosas
Como inspiração, escrevo este PSILVA em um retiro na cidade de Ouro Preto. Aqui venho nos últimos dois anos quando me sinto em falta de estar em primeira pessoa. Assim me encontro em um confortável apartamento, simples como eu gostaria de ser. Na geladeira, uma moringa de água e uma maçã.
Nas primeiras horas surge um desconforto, uma inquietação de uma falta imaginária. Aqui existe a possibilidade de eu não conseguir fugir de mim. Por isto fico aqui por oito retirados dias, tempo suficiente para que todas as estratégias de voltar à terceira pessoa fracassem. Um desconforto, sem sofrimento.
Já muito próximo dos cinquenta anos, meu corpo sente as marcas da minha ausência. Diabetes, problemas circulatórios e perda de visão me relembram a falta de continência dos meus desejos. Tudo isto e o impublicável tornando-me uma testemunha da minha vida. E assim, como testemunha e não como vítima, encontro a força para transformar minhas emoções mais profundas em sentimentos de amor que me provocam todo o tempo a dar sentido a minha vida.
Venho aqui retirar as rosas que coloquei sobre mim. Deixo esta homenagem para os meus amigos bem mais adiante fazerem. Preciso deste eu-corpo, pois ainda tenho muito a fazer.
Meus agradecimentos a Jean-Paul Rességuier e a Barbara Mathieu, bons cultivadores de rosas.
Como inspiração, escrevo este PSILVA em um retiro na cidade de Ouro Preto. Aqui venho nos últimos dois anos quando me sinto em falta de estar em primeira pessoa. Assim me encontro em um confortável apartamento, simples como eu gostaria de ser. Na geladeira, uma moringa de água e uma maçã.
Nas primeiras horas surge um desconforto, uma inquietação de uma falta imaginária. Aqui existe a possibilidade de eu não conseguir fugir de mim. Por isto fico aqui por oito retirados dias, tempo suficiente para que todas as estratégias de voltar à terceira pessoa fracassem. Um desconforto, sem sofrimento.
Já muito próximo dos cinquenta anos, meu corpo sente as marcas da minha ausência. Diabetes, problemas circulatórios e perda de visão me relembram a falta de continência dos meus desejos. Tudo isto e o impublicável tornando-me uma testemunha da minha vida. E assim, como testemunha e não como vítima, encontro a força para transformar minhas emoções mais profundas em sentimentos de amor que me provocam todo o tempo a dar sentido a minha vida.
Venho aqui retirar as rosas que coloquei sobre mim. Deixo esta homenagem para os meus amigos bem mais adiante fazerem. Preciso deste eu-corpo, pois ainda tenho muito a fazer.
Meus agradecimentos a Jean-Paul Rességuier e a Barbara Mathieu, bons cultivadores de rosas.
Do alto dos meus quase cinquenta anos e, julgava eu, uma flexibilidade para absorver situações heterodoxas desta contemporaneidade, recebi de minha sobrinha uma notícia que me calou: “Tio, tenho uma amiga travesti”. Depois de alguns segundos de fusão nuclear cerebral, pois nem o tradicional “o que você quer dizer, com isto” veio a minha mente, caímos ambos em uma gargalhada. Concluí que nada tinha a dizer, a não ser o fato de que aquilo me causou muita surpresa. Refeito do susto, passamos a conversar sobre o fato curioso até minha primitiva flexibilidade reaparecer. Na mesma idade que ela, vi um travesti pela janela do carro do meu pai, que teve alguma dificuldade para explicar o que eu tinha visto.
Esta sensação de estranhamento me recorda tantas outras que tive em tempos de marinheiro, quando morei no Rio de Janeiro. Recordo-me do primeiro salto de pára-quedas (quem me conhece hoje vai sentir também este estranhamento), de passar em meio a um arrastão na Avenida Brasil, de dançar ao som da Orquestra Tabajara no Iate Clube e de enfrentar um furacão em alto-mar aos 19 anos. Estranho foi também o que encontrei em mim nos meus processos terapêuticos.
Passado o tempo, sei que estranhamentos dão um sentido especial em minha vida e, vez por outra, provoco-os intencionalmente. Assim, bem recentemente, provoquei um destes que me tomou de surpresa: decidi apoiar a campanha política de um amigo psicólogo. Confesso que a sensação foi especialmente estranha, pois sempre me preparei como psicólogo para tantas coisas, mas nunca mergulhar em um terreno tão complexo. Sei que a Psicologia precisa de representantes que provoquem algum estranhamento ético na política. Assim, estranhamente, abracei uma causa cujos efeitos em mim ainda desconheço.
Dedicado aos psicólogos companheiros de estranhamentos.
Algumas vezes recebo e-mails de estudantes de Psicologia com dúvidas sobre a profissão. Especialmente alguns parecem mais idealistas, no melhor sentido da palavra. Seguem abaixo as conversas eletrônicas de um deles que prendeu muito minha atenção, em um momento de decisão de nossa conversa. Minhas perguntas têm, como sempre, a intenção de provocar algum movimento.
PSILVA - Política e cidadania são a mesma coisa, em línguas diferentes. Por que falar nisto ao invés de copa e futebol?
ANJO - Talvez porque, ganhando ou perdendo a copa, durante os próximos quatro anos iremos discutir futebol. Cidadania? Talvez voltemos a falar dela somente daqui há dois anos. Se fôssemos políticos, com a mesma intensidade que somos técnicos de futebol, cidadania não precisaria ser ensinada na escola.
PSILVA - Será esta escolha uma questão de prazer, ou seja, escolho o futebol por que é mais fácil? Mas a política, no bom e mau sentido, também influencia o futebol não é?
ANJO - Afinal, se perdermos a copa, a culpa é do Dunga. Se perdermos quatro anos politicamente, a culpa é de quem? Ninguém quer carregar esse fardo, ninguém quer ser responsável. E mais importante do que a política influenciar o futebol é não deixar esta ser influenciada por ele.
PSILVA - Mas futebol não é esporte, não é saudável?
ANJO - E muito! Sobretudo para quem pratica. Uma política saudável requer atuação, como uma equipe unida. Se não quisermos nos tornar sedentários de direitos, precisamos “correr atrás da bola”. Torcer é importante, mas não o suficiente. Se fosse assim, teríamos ganho todas as copas do mundo...
PSILVA - Acho que você se aproveita do fato de ser estudante para dar uma resposta tão pouco psicológica. Onde está a Psicologia nisto?
ANJO - Como terapeuta, pensei que você fosse capaz de reconhecê-la nas entrelinhas. Ou a tua Psicologia limita-se aos quatro cantos de seu consultório e às “faltas cometidas” pelos teus pacientes?
PSILVA - Ah, há quanto tempo a Psicologia fica como algo reconhecido nas entrelinhas. Chega de marginalidade, de espaços imaginários, de lugares seguros e defendidos pelos pensamentos. Isto sim é limitar algo em quatro quantos! Não está na hora de se explicitar o que se quer?
ANJO - Que sejamos agentes de mudança e não, como no futebol, apenas meros expectadores da política e da Psicologia. O verdadeiro cidadão é aquele que se reconhece como parte das decisões políticas de seu país e, principalmente, dos rumos de sua profissão ano a ano, dia após dia.
PSILVA - Uma resposta política, esta, a sua. Quando não sabe o que responder ou não quer se comprometer, usar obviedades. Que tal ser mais sincero e me responder a pergunta anterior?
ANJO - Conferências, Mobilizações contra o PL do Ato Médico, Pré-Congressos, Congresso Regional de Psicologia, Congresso Nacional, Eleições no CRP, para citar alguns. Quantas oportunidades destas você aproveitou?
PSILVA - Aproveitei-as todas e juntei um monte de certificados. O que seria aproveitar oportunidades em sentido pleno?
ANJO - Não desmereça aqueles que, diferente de você, buscam mais do que “juntar” certificados. Eles encontram sentido pleno ao perceberem que seus certificados não têm relevância se os rumos de tua profissão e de teu país forem os piores.
A partir deste ponto a correspondência ficou deliciosamente impublicável e pessoal. Sei que encontrei um futuro psicólogo que, descendo dos céus, terei orgulho de ter como colega de profissão.
Agradeço ao estudante de Psicologia Angelo Horst por dar vida a este texto.
Recentemente fizemos uma palestra para alunos de Psicologia sobre o Ato Médico. Entraram em pauta diversos assuntos, na tentativa de explicar porque chegamos ao ponto de a nossa profissão ter o risco de sofrer interferências da medicina. Inicialmente apresentamos o movimento que se instalou ao longo da história para identificar medicina e saúde como sinônimos. A medicina se coloca na mídia, na novela, no noticiário, na Câmara, no Senado e em tantos outros lugares de visibilidade. A certa altura uma aluna pede a palavra e diz que psicólogo faz muito nhê-nhe-nhé e se referia a falta de organização política da categoria. Brilhante capacidade de síntese dela ao citar que nos falta uma certa noção de Psicologia.
Dedicado a precisa e sintética Melani.
A Natureza
Em tempos de "que mundo é este?", figuras como Zilda Arns fazem falta. Era pessoa e seus atos médicos estavam estritamente ligados à busca de um bem estar social. Assim são os soldados brasileiros que estão no Haiti. Dão suas vidas para ajudar a restabelecer a ordem àquele país. Mas nem todas Zildas são Arns, nem todos os médicos são éticos e nem todos os brasileiros são estes soldados.
Como psicólogos sabemos da dificuldade de nos construir como agentes de ações éticas e o que enfrentamos internamente para colocarmo-nos de pé frente às adversidades. Assim, sujeitos às forças das naturezas externas e internas, seguimos, curadores feridos, encontrando o sentido da vida.
Em tempos de "que mundo é este?", figuras como Zilda Arns fazem falta. Era pessoa e seus atos médicos estavam estritamente ligados à busca de um bem estar social. Assim são os soldados brasileiros que estão no Haiti. Dão suas vidas para ajudar a restabelecer a ordem àquele país. Mas nem todas Zildas são Arns, nem todos os médicos são éticos e nem todos os brasileiros são estes soldados.
Como psicólogos sabemos da dificuldade de nos construir como agentes de ações éticas e o que enfrentamos internamente para colocarmo-nos de pé frente às adversidades. Assim, sujeitos às forças das naturezas externas e internas, seguimos, curadores feridos, encontrando o sentido da vida.
Euclides da Cunha descreve antropologicamente, em "Sertões", um Antonio Conselheiro psicótico, fanático religioso monarquista que entrou para a história por falta de vaga em hospital psiquiátrico. A Euclides se atribui a descrição de Antonio como herói, o que em realidade nunca aconteceu. A fantasia heróica de Conselheiro foi escrita e encenada por diversos intelectuais como algo da realidade histórica. Ficam as questões de que se há naquela loucura um invariante heróico ou pura inconsequência e fantasia psicótica (existe esta pureza?). Com qual finalidade se alterou tal relato? Seria a semelhança de Conselheiro com a imagem de um conhecido salvador, de um herói a todo custo? A liberdade para decidir qual Conselheiro queremos comprar ou se não precisamos comprar nenhum parece que conflita com a ideia que sempre precisamos fazer algo. Comprada a ideia do beato Antonio, poderia ela substituir algo que nos seja inconsciente? Por quanto tempo? E, se não comprada, para onde vazaria esta substituição?
*Nos "Sertões" conta-se que o início do conflito de Canudos se dá quando Conselheiro comprou madeira que não lhe foi entregue.
Dedicado ao amigo Ivan Jaf, que escreve sobre Conselheiro em fiel consideração à Euclides da Cunha.
Psicologia de Caserna
Nos meus tempos de caserna a única experiência que tive com a Psicologia foi o amor platônico pela Psicóloga do centro de instrução da marinha. Todo dia eu a via, ao final da tarde, saindo de seu consultório em direção ao estacionamento. Eu tinha quase certeza que ela percebia a intenção dos desejos do meu olhar. Ao mesmo tempo havia entre nós, alunos, um temor com relação a ela, pois circulava a lenda de que ela levava ao Capitão todos os segredos que ouvia. Percebo agora que já era seduzido pela Psicologia desde muito antes de ter consciência. Neste tempo a Psicologia nas forças armadas timidamente se esforçava para mostrar que não era a testa de um movimento comunista (ou, como alguém pode dizer, apenas a testa de um movimento comunista...).
Tantos anos após encontramos esta Psicologia levando humanidade às comunas militares, possibilitando que esses profissionais da paz suavizem a desumanidade no Haiti. Penso em quantas mais transformações vou assistir a Psicologia realizar.
Dedicado a Rubens Weber, que pode viver o presente deixando o passado como apenas uma lembrança.
Nos meus tempos de caserna a única experiência que tive com a Psicologia foi o amor platônico pela Psicóloga do centro de instrução da marinha. Todo dia eu a via, ao final da tarde, saindo de seu consultório em direção ao estacionamento. Eu tinha quase certeza que ela percebia a intenção dos desejos do meu olhar. Ao mesmo tempo havia entre nós, alunos, um temor com relação a ela, pois circulava a lenda de que ela levava ao Capitão todos os segredos que ouvia. Percebo agora que já era seduzido pela Psicologia desde muito antes de ter consciência. Neste tempo a Psicologia nas forças armadas timidamente se esforçava para mostrar que não era a testa de um movimento comunista (ou, como alguém pode dizer, apenas a testa de um movimento comunista...).
Tantos anos após encontramos esta Psicologia levando humanidade às comunas militares, possibilitando que esses profissionais da paz suavizem a desumanidade no Haiti. Penso em quantas mais transformações vou assistir a Psicologia realizar.
Dedicado a Rubens Weber, que pode viver o presente deixando o passado como apenas uma lembrança.
A Sexualidade que se Fala
Quando criança eu tinha dúvidas sobre questões da sexualidade. Sentia algo com relação a chefe escoteira que mexia com meus hormônios. Certo dia, ao chegar da escola, encontrei meus pais e minha avó no quarto de passar roupas. Eu estava curioso com o que meus amigos falavam sobre masturbação e perguntei ao meu pai o que era ...nheta. Minha avó e minha mãe caíram na maior gargalhada e meu pai tentava gesticular, mas eu nada entendia. Lá pelos meus 18 anos de idade ele conseguiu me responder.
Hoje percebe-se inúmeras ações de educação sexual nas próprias escolas, algumas realmente orientadoras e outras religiosamente repressoras e moralistas. Enquanto isso, recebemos mais notícias de todas as parafilias possíveis. De fato está se falando mais sobre a nossa sexualidade. Tenho a impressão que vamos continuar falando mais dela quanto mais louco nosso mundo ficar.
Entre o passado em que poucas coisas eram faladas sobre a sexualidade e o momento atual em que tanto se fala, parece existir algo invariante. Esta invariância, arrisco dizer, que seria o fato de que saudavelmente sempre teremos dúvidas sobre nossa sexualidade.
*Faço a sugestão de leitura do livro “O MASCULINO EM QUESTÃO”, organizado por Walter Boechat.
Quando criança eu tinha dúvidas sobre questões da sexualidade. Sentia algo com relação a chefe escoteira que mexia com meus hormônios. Certo dia, ao chegar da escola, encontrei meus pais e minha avó no quarto de passar roupas. Eu estava curioso com o que meus amigos falavam sobre masturbação e perguntei ao meu pai o que era ...nheta. Minha avó e minha mãe caíram na maior gargalhada e meu pai tentava gesticular, mas eu nada entendia. Lá pelos meus 18 anos de idade ele conseguiu me responder.
Hoje percebe-se inúmeras ações de educação sexual nas próprias escolas, algumas realmente orientadoras e outras religiosamente repressoras e moralistas. Enquanto isso, recebemos mais notícias de todas as parafilias possíveis. De fato está se falando mais sobre a nossa sexualidade. Tenho a impressão que vamos continuar falando mais dela quanto mais louco nosso mundo ficar.
Entre o passado em que poucas coisas eram faladas sobre a sexualidade e o momento atual em que tanto se fala, parece existir algo invariante. Esta invariância, arrisco dizer, que seria o fato de que saudavelmente sempre teremos dúvidas sobre nossa sexualidade.
*Faço a sugestão de leitura do livro “O MASCULINO EM QUESTÃO”, organizado por Walter Boechat.
A Psicologia que nos fez
Em 1939 minha vó, grávida de minha mãe, cruzava o Atlântico a bordo do navio Lloyd Santarém. Vinham, ambas em águas tranquilas, da Alemanha para o Brasil. Meu avô ficaria por mais um mês para vender a casa e viria no navio seguinte. Neste mês
que se seguiu a guerra foi deflagrada e ele nunca mais veio. Foi convocado e morreu no quarto ano de guerra. A casa foi bombardeada e pouco sobrou. Minha mãe nasceu em Joinville e viveu lá até os 15 anos. Nesta idade, já morando e se sustentando sozinha, entrou em um ônibus e foi para São Paulo em busca de sua mãe que a deixara para buscar um emprego melhor. Lá as duas se encontraram definitivamente e se mudaram para o Rio de Janeiro. Nas horas de folga ela colocava suas calças e andava de lambreta (conta a lenda que foi uma das primeiras mulheres a fazer isto no Rio), escalava as montanha como o Pão de Açúcar e o Dedo de Deus e frequentava os bailes. Em um destes conheceu um bahiano que se tornaria pouco depois meu pai. Há poucos dias atrás ela escalou seu pico mais alto, já resolvida a não mais voltar.
Por conta desta história e seus recheios minha irmã e eu chegamos à psicologia, profissão esta que por vezes de alpargatas roda, como fazia minha mãe, sobe novas e íngremes montanhas.
Dedicada a Traudl Dorrenbach Luna que, dentre tantas coisas era nossa mãe.
Em 1939 minha vó, grávida de minha mãe, cruzava o Atlântico a bordo do navio Lloyd Santarém. Vinham, ambas em águas tranquilas, da Alemanha para o Brasil. Meu avô ficaria por mais um mês para vender a casa e viria no navio seguinte. Neste mês
que se seguiu a guerra foi deflagrada e ele nunca mais veio. Foi convocado e morreu no quarto ano de guerra. A casa foi bombardeada e pouco sobrou. Minha mãe nasceu em Joinville e viveu lá até os 15 anos. Nesta idade, já morando e se sustentando sozinha, entrou em um ônibus e foi para São Paulo em busca de sua mãe que a deixara para buscar um emprego melhor. Lá as duas se encontraram definitivamente e se mudaram para o Rio de Janeiro. Nas horas de folga ela colocava suas calças e andava de lambreta (conta a lenda que foi uma das primeiras mulheres a fazer isto no Rio), escalava as montanha como o Pão de Açúcar e o Dedo de Deus e frequentava os bailes. Em um destes conheceu um bahiano que se tornaria pouco depois meu pai. Há poucos dias atrás ela escalou seu pico mais alto, já resolvida a não mais voltar.
Por conta desta história e seus recheios minha irmã e eu chegamos à psicologia, profissão esta que por vezes de alpargatas roda, como fazia minha mãe, sobe novas e íngremes montanhas.
Dedicada a Traudl Dorrenbach Luna que, dentre tantas coisas era nossa mãe.
Transpsicologia
Bem há pouco tempo comprei um carrão daqueles que um cinquentão quer ter para compensar a falta de potência sexual. Eu já não dirigia algo assim desde os meus vinte anos de idade. Então, você poderá me ver guiando pela cidade com a mão ao volante, ar condicionado ligado, vidros escuros dentro do limite da lei. Finjo que não estou sendo visto, mas de perto você pode ver o sorriso no canto da minha boca. Mas garanto-lhe que é só isto!
Não avanço o sinal, dou lugar aos outros carros e muito raramente levo uma multa (para sua curiosidade uma multa a cada dois anos), para a infelicidade das contas públicas. Só abri o vidro para tecer comentários eloquentes a uma senhora há uns 25 anos (possivelmente hoje eu abriria a janela novamente... apenas minhas palavras seriam diferentes perante a loucura que ela fez). Por sorte do ofício, raramente estou nas ruas nos horários de congestionamento, mas vejo meus pacientes chegarem reclamando do trânsito. Cada qual o faz de acordo com sua própria história (seus transtornos, suas neuroses...). Penso naquelas piadas como “um monge tibetano, um padre beneditino, um rabino pacificador e um analista lacaniano estavam dirigindo no horário de rush no centro de Curitiba...”. O restante da piada fica por sua conta e imaginação.
Assim, entre os sinais, as multas e os acidentes transitam as pessoas que a Carteira Nacional de Habilitação qualifica a dirigir.
Bem há pouco tempo comprei um carrão daqueles que um cinquentão quer ter para compensar a falta de potência sexual. Eu já não dirigia algo assim desde os meus vinte anos de idade. Então, você poderá me ver guiando pela cidade com a mão ao volante, ar condicionado ligado, vidros escuros dentro do limite da lei. Finjo que não estou sendo visto, mas de perto você pode ver o sorriso no canto da minha boca. Mas garanto-lhe que é só isto!
Não avanço o sinal, dou lugar aos outros carros e muito raramente levo uma multa (para sua curiosidade uma multa a cada dois anos), para a infelicidade das contas públicas. Só abri o vidro para tecer comentários eloquentes a uma senhora há uns 25 anos (possivelmente hoje eu abriria a janela novamente... apenas minhas palavras seriam diferentes perante a loucura que ela fez). Por sorte do ofício, raramente estou nas ruas nos horários de congestionamento, mas vejo meus pacientes chegarem reclamando do trânsito. Cada qual o faz de acordo com sua própria história (seus transtornos, suas neuroses...). Penso naquelas piadas como “um monge tibetano, um padre beneditino, um rabino pacificador e um analista lacaniano estavam dirigindo no horário de rush no centro de Curitiba...”. O restante da piada fica por sua conta e imaginação.
Assim, entre os sinais, as multas e os acidentes transitam as pessoas que a Carteira Nacional de Habilitação qualifica a dirigir.
Daniel Barenboim
Assistindo uma master class de Daniel Barenboim para um jovem
pianista, ouvi curiosamente a explicação sobre como o silêncio compõe
uma música e como o tempo, Cronos e Kairos, constituem-na. Em
certo momento, o Maestro diz ao aluno que teria que tomar cuidado
para que sua intensidade não tornasse a liberdade uma anarquia.
Também, em outro momento, o jovem escolhe mudar algo da música,
simples- mente porque quis, sem qualquer explicação, fato este
questionado por Barenboim. Você pode mudar a música - disse este -
mas precisa saber para que faz isto.
No decorrer da aula fui profundamente tocado pela fala e silêncio do
Maestro. Fui encontrando algo que me faltava, sem que soubesse da
falta. Algo da minha adolescência se aquietou. Após
algum tempo de silêncio, voltei a assistir outras aulas musicais de
Psicologia.
Dedicado a Marta que, em seu inocente silêncio, faz com que eu sinta algo do que me falta.
Ainda em tempos de crise, bateu à porta do meu consultório um fantasma. Queria saber o que faz uma psicoterapia. Sentou na poltrona como se já soubesse como proceder. Mas não sabia. Observou os livros com alguma familiaridade. Pensou nas pessoas que por ali passaram, quase sentindo algo delas. Pensou nas pessoas que viriam nos tempos de crise. Como elas seriam, do que se queixariam? Por vezes desaparecia, outras levitava em seus pensamentos. Não havia nenhuma conclusão nem vida nele. Não se arriscaria a colocar em dúvida sua não existência. Seguiu-se o tempo desmedido, sem sentido.
Ainda neste tempo, bateu à porta do meu consultório uma pessoa. Já fazia ali psicoterapia. Assim, de imediato, minha alma voltou ao meu corpo e juntos sabiam como proceder. Desassombrado de mim, voltei a encontrar sentido em minha vida.
Nestes tempos de crise (quando não são?) vou ficar atento à minha porta pois pessoas e fantasmas baterão nela.
* Dedicado a Sonia Guidi, cujo consultório por tanto tempo assombrei até aprender que estava vivo.
Em tempos de crise, está que ainda vai chegar nos próximos meses, como serão afetadas além dos seus bolsos, as pessoas que atendemos?
Bom, esta crise é a comissão de frente de uma crise ainda maior, que é a de valores. Sendo assim, existem duas possíveis soluções para tais pessoas. A primeira é encontrar outros valores individuais e éticos e a segunda é tentar aplacar o desconforto com certa cisão da realidade ou inconsciência, álcool e outras drogas (materiais ou emocionais).
Em pensamento acho que a segunda opção tende a levar vantagem eleitoral. Nas minhas ações elejo a primeira. E você, em quem votou?
Há cerca de um mês fomos convidados a ir ao Rio de Janeiro assistir à Odisséia de Homero, ensaiada por um grupo de jovens de periferia em situação de risco. Isto, aqueles mesmos que vemos na televisão portando armas, traficando, prostituindo-se, jurados de morte e tudo mais. Fazem parte de um projeto chamado Galpão Aplauso. Lá assistimos a arte acontecer. Colocaram incrivelmente Ítaca ao lado de Benfica (bairro de periferia do Rio). Jovens felizes, suaves e profundos. Fazem tão bem aquela arte quanto as coisas que faziam antes.
Dois dias depois fomos visitar o Galpão e ouvir a primeira conversa após a estréia. Naquele dia foi possível chegarmos lá, pois os traficantes do morro da Providência estavam "na paz". Sentados ao chão de um antigo armazém do porto, entre os vôos de pombos e o barulho da rua tivemos nossa segunda experiência transcedental. Lá estavam eles discutindo carioca e lindamente a Odisséia de Homero e deles. Conversamos curiosamente sobre aquele ensaio transformador em suas vidas. Acompanhou-me um ator, Richard Rebelo, que conhece profundamente a Ilíada, do mesmo Homero. A pedido do diretor ele iniciou a récita do canto 16, na tradução difícil, fiel e rebuscada de Odorico Mendes. Ah, sem entender quase nenhuma palavra aquelas pessoas compreenderam cada intenção e, emocionados, discutiram aquilo por longos minutos mais.
Dedicado à Thierry e Suzana que dirigiram aquela gente para onde o bem fica.
Extraído do texto da peça “Psicólogo da Silva”
Ingressei na faculdade de Psicologia já mais velho, uns trinta e tantos. Recordo-me dos rostos dos meus colegas, a maioria mais jovem. Rostos curiosos, críticos, sonhadores e escolhidos pela Psicologia. Hoje a maioria já desistiu da profissão. Parece que não conseguiram dar à Psicologia o que ela queria.
Tenho encontrado uns outros tantos psicólogos com bem mais tempo de profissão do que eu. Aprendi com alguns deles, os quais conseguiram passar pela barreira do narcisismo, o significado do encontro com quem atende. Encontro este que nos faz querer mais qualidade de vida por dar sentido à nossa existência.
Relatório comunicação
O carro faz a curva e quase voa João. Eu seguro a porta para não abrir e não encosto no banco para não quebrar. Uma galinha cruza a frente do carro e Deisy começa a gritar. Raphael mergulha e acha uma chave em pleno mar. Guilhermino descobre o monumento a José Marti. Assim aconteceram algumas cenas brasileiras na terra de Fidel.
Conversávamos animadamente, sem nenhuma censura, a cada dez passos. Não era assim com o povo local. Castrados e embargados de suas necessidades básicas, perambulavam entre uma depressão e outra, tais como cães e gatos destituídos de suas cordas vocais. Lá e aqui faz-se necessária uma Psicologia que avalise o direito subjetivo de se comunicar.
Dedicado a todos “los compañeros” da aventura Cubana.
O carro faz a curva e quase voa João. Eu seguro a porta para não abrir e não encosto no banco para não quebrar. Uma galinha cruza a frente do carro e Deisy começa a gritar. Raphael mergulha e acha uma chave em pleno mar. Guilhermino descobre o monumento a José Marti. Assim aconteceram algumas cenas brasileiras na terra de Fidel.
Conversávamos animadamente, sem nenhuma censura, a cada dez passos. Não era assim com o povo local. Castrados e embargados de suas necessidades básicas, perambulavam entre uma depressão e outra, tais como cães e gatos destituídos de suas cordas vocais. Lá e aqui faz-se necessária uma Psicologia que avalise o direito subjetivo de se comunicar.
Dedicado a todos “los compañeros” da aventura Cubana.
Relatório Engajamento
Venha fazer parte de nossos ideais! Vamos construir juntos! Unidos venceremos! E assim somos convocados a acreditar e participar dos mais diversos propósitos. Basta um mínimo de consciência crítica para desconfiarmos disto. Ah, nós não acreditamos mais em muita coisa e em alguma pessoa. Vivemos em um mundo paranóico, cercados de culpa e medo. Nós desconfiamos da linha, do processo, da ética, do número do CRP do outro.
“Então você é sistêmico, hein? Mas de que escola, de que escola??”. “Corporal, hein! Já imagino o que acontece em seu consultório!”. “Psicanalista? Como consegue ser esta lousa branca?” “Escolar? Escolar? O que é isto?!”. “Psicólogo Social! Deve ser comunista disfarçado!”. “Hospitalar, vai me dizer que você consegue fazer mesmo alguma coisa em tão pouco tempo”. “Conselheiro do CRP?? Sempre os mesmos... não devem ter mais nada a fazer na vida!”
Ainda assim, a passos curtos e firmes, desejamos e construímos uma humanidade de relações mais justas. Não é?
Venha fazer parte de nossos ideais! Vamos construir juntos! Unidos venceremos! E assim somos convocados a acreditar e participar dos mais diversos propósitos. Basta um mínimo de consciência crítica para desconfiarmos disto. Ah, nós não acreditamos mais em muita coisa e em alguma pessoa. Vivemos em um mundo paranóico, cercados de culpa e medo. Nós desconfiamos da linha, do processo, da ética, do número do CRP do outro.
“Então você é sistêmico, hein? Mas de que escola, de que escola??”. “Corporal, hein! Já imagino o que acontece em seu consultório!”. “Psicanalista? Como consegue ser esta lousa branca?” “Escolar? Escolar? O que é isto?!”. “Psicólogo Social! Deve ser comunista disfarçado!”. “Hospitalar, vai me dizer que você consegue fazer mesmo alguma coisa em tão pouco tempo”. “Conselheiro do CRP?? Sempre os mesmos... não devem ter mais nada a fazer na vida!”
Ainda assim, a passos curtos e firmes, desejamos e construímos uma humanidade de relações mais justas. Não é?
Todos falavam sobre as mudanças necessárias, discutiam o rumo do país, o que estava errado e se apressavam em falar sugestões. Alguns anos depois outros entravam e falavam em outras mudanças. Quanta invariância! É possível falar das idéias e das propostas. A mudança é ação, é silêncio, é muda.
Há uns quase três anos venho escrevendo o Psicólogo da Silva neste lugar. É um exercício de reflexão, desabafo e uma provocação crítica a mim e aos meus colegas Psicólogos. Ao terminar de escrever cada um, me sinto aliviado e então vou dormir. Tão cedo não vou ler o que escrevi. Não gosto do que escrevo, apenas gosto de escrever. Acho ruim, pouco literário, etc. Muito antes de desistir, provoco-me a escrever novamente. Eu, paciente de mim mesmo.
Volto a ler o que escrevi quando o boneco da revista está pronto. Permito-me a isso, pois a ilustração já está junto. Ela dá as cores que me faltaram e a arte que não tenho. Ela dá sentido e cheiro de letras. É assim escrever com Paixão.
Dedicado a Almir Paixão que, corajosamente, ilustra a Psicologia que lhe descrevo.
Relatório de um sonho
Brasil de um sonho intenso... Restará a nós apenas interpretar o imaginário de seu sono, eterno sono? Interpretar este coletivo e seus arquétipos do herói, heróis mortos ou de falsos heróis vivos? Des-animas, des-animus, des-perto transcendente, como curador-ferido. Afinal, de que adianta interpretar o sonho de quem não acorda?
Brasil de um sonho intenso... Restará a nós apenas interpretar o imaginário de seu sono, eterno sono? Interpretar este coletivo e seus arquétipos do herói, heróis mortos ou de falsos heróis vivos? Des-animas, des-animus, des-perto transcendente, como curador-ferido. Afinal, de que adianta interpretar o sonho de quem não acorda?
O Fotógrafo
Casamento é para quem?
Fui ao casamento e não vi ninguém, só o fotógrafo.
Será que sou assim em meu consultório?
Casamento é para quem?
Fui ao casamento e não vi ninguém, só o fotógrafo.
Será que sou assim em meu consultório?
Suicídio
Acorda
Há corda
Fez-se paciente
Acorda
Há corda
Fez-se paciente
A Terapia
Muda não fala
Muda fala
A fala muda
Muda não fala
Muda fala
A fala muda
Enquanto se vendem anéis de Gyges em todos os planaltos, também se vêem heróis na contemporânea República. Entrou pela porta da frente assustado e dirigiu-se à atendente. Ao iniciar a consulta pediu para ser internado. Adolescente, usuário de crack e outras drogas, já estava em atendimento naquele centro há algum tempo. O psicólogo já sabia que aquele pedido estava relacionado com uma ameaça de morte por parte de algum traficante. Já sabia que provavelmente dentro de poucos dias ele iria fugir da instituição e no próximo atendimento ele iria dizer: “não dá nada”. Com alguma esperança, redução de danos, e outros recursos, segue a Psicologia fazendo atos heróicos nos CAPS da vida. Entre uma consulta e outra, em meu consultório com ar condicionado, penso nisto.
Sentados à mesa da reunião, éramos em 12 pessoas discutindo o destino daquele psicólogo. Ele fez, ele não fez. Ele vai ser punido desta forma, da outra forma. Ele vai ou não recorrer da decisão? Este artigo, tal parágrafo, foi assim. Cometeu falta ética, quase ética, pré-ética, ou pré-tipificada. A testemunha antes disse aquilo, agora isso. Ele apenas desconhecia que não podia fazer, diz ter tido conhecimento e apenas se esqueceu. Disse também que usa a Psicologia com uma abordagem própria, inter/trans alguma coisa. Assim justifica seu abandono às regras éticas. Quando perguntado, diz que o CID é 10, é um amigo do bairro. DSM é como um distúrbio sadomasoquista. Faz da Psicologia seu instrumento de poder? Ou será pura acídia?
Dos rostos e olhares perplexos, como estariam a da grande maioria dos psicólogos se estivessem presentes, percorre em silencioso consciente coletivo a pergunta: como pode isso (ou alguém assim) acontecer?
Dedicado a uma certa Maria que, acredito, pela primeira vez errou um diagnóstico, o próprio, quando disse ter acídia.
Sentou-se na confortável cadeira e esperou ansiosamente o início do atendimento. Suas amigas haviam dito que aquela profissional iria lhe ajudar a “mudar a cabeça”. Já há algum tempo, percebia uma necessidade de mudar algo, mas não sabia o que era. Começaram a conversar sobre questões do dia-a-dia, as apresentações formais e tudo mais. A conversa tornou-se agradável e ela começou a sentir alguma confiança a ponto de se preparar para dizer o que queria daquele encontro. A profissional olhava-a atentamente, como que estivesse tentando adivinhar seus pensamentos. Falaram um pouco mais sobre pessoas que conheciam em comum, sobre pessoas famosas e seus estilos. Então, sentiu-se confortável para dizer que estava ali querendo uma mudança, mas não sabia qual era. De súbito a profissional levantou-se, tocou nos seus cabelos e disse: “Vermelho, isso, vermelho! Às vezes tenho que ser meio psicóloga aqui. As pessoas vêm e desabafam seus problemas e eu sempre tenho alguma sugestão. Vamos pintar seus cabelos de vermelho!”. E pintou mesmo. Sua fisionomia parecia mais viva, mais sensual, com aquela cor. A indicação da cabeleireira foi perfeita. Ligou para suas amigas agradecendo a indicação. Mais tarde, já sentada em seu consultório, a psicóloga refletia sobre o que é fazer psicologia por inteiro.
Eram demasiados os pensamentos que vinham a minha consciência enquanto tentava compreender a pessoa a minha frente. Sua história, rica em detalhes, me fascinava. Anos de incontáveis batalhas, de dificuldades, de preocupações financeiras e sociais. Cresceu em um bairro pobre e foi líder desde a sua juventude. Um exemplo de força, determinação e coragem, pensava eu. Venceu sem muita ajuda e mantinha sua humildade intacta. Seguia no relato de alguém que se construiu como indivíduo dentro do que se espera em uma sociedade cristã. Assim seguia a entrevista, até o momento em que consegui perguntar o motivo dele estar ali. Respondeu, com certo sorriso, que era Deputado e candidato a reeleição. Percebeu, antes que eu, que nós, psicólogos, somos respeitáveis formadores de opinião.
Recebi um e-mail dizendo assim: “se não tem tomada dentro das celas, como os presidiários carregam seus celulares?”. Leio Dante e outros três mil livros, diz Marcola. Perguntei a alguns Psicólogos quantos livros leram nos últimos tempos. Quantos sabem dizer das questões sociais que o Sr. Camacho citou em entrevista?
Existe uma diferença entre a criminalidade à moda pavão em dia de acasalamento carioca e o crime organizado paulista. E, na Psicologia, quais as versões diferentes que podem existir? Quantas Psicologias existem? Tantas quantos Psicólogos existam?
Assim eu seguia a minha sessão de análise, reclamando adolescentemente da Psicologia. Diz o analista (o pavão, ao qual eu queria metaforicamente atingir) que é isto, que para ser Psicólogo tenho que trabalhar a minha castração. Pergunto se o Brasil vai ser campeão, ele responde que, neste momento, o país não é campeão e não sabe se vai ser. Pavão maldito! Será que ele pensa que o Marcola é algo como um castrador real para um país adolescente? É a encarnação do deus Marduk em terras brasileiras? O que este Marcola falaria se fosse perguntado sobre como anda a Psicologia?
Ilustrações de Ademir Paixão. Montagem por
Gonçalo Baptista Ferraz.